Glúten Faz Mal à Saúde? O que a Ciência Diz a Respeito
Por: Camila Gomes Victorino
Comer alimentos sem glúten é uma moda ou uma necessidade? Fonte: GiorgiaPfeifer |
É cada vez mais comum ver em
lojas de produtos naturais o termo “Glúten free” ou “Livre de glúten” e as
dietas mais saudáveis procuram abolir este ingrediente, porém a questão é saber
se o produto é de fato danoso à saúde ou se somente se constitui em uma moda
saudável aboli-lo.
O glúten é um composto protéico
encontrado em sementes de gramíneas como aveia, centeio, cevada e malte, mas
está principalmente presente no trigo. Ele confere elasticidade às massas, o
que faz com elas consigam armazenar o gás produzido pelo fermento, fazendo o
pão ou bolo crescer. Infelizmente, entretanto, é esta elasticidade que tornou o
glúten um vilão em nossa sociedade. De fato, naturalmente as sementes de trigo
não possuem a mesma quantidade de glúten, pois existe variabilidade genética
dentro de qualquer espécie. Deste modo, antigamente não era possível saber
quanto glúten uma determinada safra de trigo continha e os padeiros tinham que
usar seus braços para “bater” a massa – um pouco mais ou menos, dependendo da
safra – para que o glúten fosse trabalhado e pudesse cumprir seu papel.
A modernização da panificação levou ao aumento de glúten no grão de trigo. Fonte: Perfecta |
Nos anos 40, todavia, as máquinas
de “bater” surgiram nas indústrias panificadoras e como elas eram programadas
para trabalhar por determinados ciclos, a semente de trigo não poderia ter
variabilidade na composição de glúten. Além disso, a força das máquinas gerou a
necessidade de uma semente de trigo específica que agüentasse as fortes batidas
do motor. Deste modo, a necessidade das máquinas se impôs sobre a variabilidade
do trigo e isso gerou a necessidade de se criar variedades de trigo que
contivessem quantidades similares de glúten. Além disso, como uma maior
quantidade de glúten diminuía o trabalho necessário, a semente começou a ser
selecionada para possuir cada vez mais glúten. Em um século, ela passou a ter
de 7% a 12% para cada semente, aproximadamente1.
A doença celíaca afeta hoje mais de 2 milhões de pessoas no mundo. Fonte: SemglutensemLactose |
O que interessa é que existe uma
doença caracterizada pela alergia ao glúten. No caso, a doença celíaca ou
intolerância ao glúten é uma doença infamatória que leva ao atrofiamento das
micro-vilosidades do intestino (região que absorve os nutrientes) e se
manifesta principalmente na infância e seus sintomas são relacionados à
diarréia crônica, desnutrição e déficit de crescimento, anemia, barriga inchada
e vômitos. Outros sintomas pouco comuns referem-se à irritabilidade, queda na
concentração, sensação de cansaço mental, depressão e enxaqueca (Aziz et al.,
2012). O problema destes sintomas é que eles são comumente confundidos com
outras doenças e muitas vezes as crianças ou adultos (raramente) são
erroneamente diagnosticados e podem até falecer. De acordo com Byass et al.
(2011) é possível que existam cerca de 2.2 milhões de crianças não
diagnosticadas com doença celíaca. Destas 2.2 milhões, estima-se que 42.000
crianças morrerão anualmente desta doença.
O mercado sem glúten movimenta cada vez mais dinheiro e portanto é importante saber se o glúten faz de fato mal à saúde. Fonte: CrisTendencias |
O tratamento é simples e consiste
na exclusão total de alimentos contendo glúten na dieta. Todavia, o maior
problema se refere ao diagnóstico dúbio e é possível que muitas pessoas possuam
intolerância, e não saibam que o glúten está relacionado a sua falta de
qualidade de vida (veja mais informações sobre doença celíaca no mundo no
artigo de Byass et al., 2011). Além disso, existem relatos na internet em geral
afirmando que mesmo sem possuir sintomas característicos de doença celíaca, o
glúten poderia fazer mal, pois, apesar de não gerar a doença em si, ele
acarretaria na perda da saúde do individuo. De fato, como o diagnóstico é difícil,
é possível que uma solução seja diminuir a quantidade de glúten na dieta,
levando a famosa moda saudável, porém, o que a ciência diz a respeito sobre o
glúten fazer mal à saúde sem que haja doença celíaca?
O que a ciência diz a respeito do glúten fazer mal a quem não apresenta doença celíaca? Fonte: SchoolsofThought |
Aziz et al. (2012) reviu estudos
que procuraram encontrar problemas relacionados ao glúten em pessoas adultas
que não possuíam doença celíaca. De fato, eles encontraram um estudo em que 94
adultos com problemas abdominais sem doença celíaca foram tratados com uma
dieta sem glúten e apresentaram melhoras nos sintomas (Kaukunen et al., 2000).
Entretanto, este estudo não possuiu um grupo controle2 para
comparação. Outro estudo, porém, testou 920 pessoas com sintomas de síndrome do
cólon irritável em doença celíaca. O estudo era duplo-cego3 e
continha um grupo controle placebo4 e os voluntários foram
submetidos a uma dieta de quatro semanas, que não continha trigo. 276 pacientes (1/3 deles) mostraram apresentar
sensibilidade ao trigo, o que não aconteceu com o grupo placebo, mostrando uma
piora nas dores abdominais e consistência das fezes (Carroccio et al., 2012).
Além disso, reações alérgicas ao glúten foram recentemente reconhecidas em um
documento consensual por 15 especialistas internacionais (Sapone et al., 2012).
Entretanto, é possível que o problema seja o trigo por si só e não exatamente o
glúten, pois os alimentos contendo trigo possuem carboidratos fermentados que
poderiam causar reações alérgicas. Esta suspeita ainda existe, mas Biesiekierski
et al. (2011) testaram 34 pacientes sem doença celíaca com síndrome do cólon
irritável em uma dieta livre dos carboidratos do trigo, mas contendo o glúten
somente. Este estudo foi duplo-cego3 e conteve um grupo placebo4
e mostrou que os sintomas dos pacientes pioraram após a ingestão repetida do
glúten.
Aparentemente, o glúten parece ser um alérgeno para muitas pessoas, mesmo que elas não apresentem doença celíaca. Fonte: Mnn |
Apesar de recentes, os estudos já
mostram que existe de fato evidência científica de que o glúten pode sim estar
levando muitas pessoas à perda na qualidade de vida e a doenças. Segundo Aziz
et al. (2012) ainda não se sabe exatamente o mecanismo fisiológico que leva
algumas pessoas a apresentarem problemas com o glúten. Apesar disso, a
precaução e a diminuição do glúten na dieta se faz cada vez mais evidente.
Comer com moderação é a melhor opção. Fonte: GreenStyle |
Ademais, Byass et al. (2011)
afirma em seu estudo que os países desenvolvidos (EUA e Europa, no caso)
possuem o maior índice de pessoas com doença celíaca no mundo. Ora, são nesses
países que o controle sobre a seleção de variedades de trigo e a mecanização da
produção de pães e bolos é maior. Também é aí que a população mais se alimenta
de produtos processados e que contêm glúten. No Brasil, ainda é comum que as
famílias comam arroz e feijão no almoço e na janta ou mandioca, como no
Nordeste. Outras farinhas que não contêm glúten também são comuns em países
subdesenvolvidos, pois estes utilizam plantas nativas, mais baratas e
disponíveis a população carente.
Deste modo, apesar de ser apenas
uma suspeita, é possível até que a ingestão excessiva de glúten, dada pelo
aumento proposital de seu conteúdo na dieta moderna, esteja levando mais e mais
pessoas a desenvolverem doença celíaca ou outras alergias. De fato, o melhor a
fazer é se conscientizar deste problema e procurar se alimentar de alimentos
frescos ou que contenham menor quantidade de glúten. Assim, pelo menos se
evita a possibilidade de doença ou de sintomas dúbios, como cansaço e
depressão, os quais, infelizmente, ainda não conseguem ser relacionados ao
glúten diretamente pela maioria dos clínicos.
Paz!
Notas
1 – Esta informação foi oferecida
pelo documentário francês “Glúten, faut-il en avoir peur?” (Glúten: deve-se ter
medo dele?”). Este documentário ainda não possui legendas em português.
2 – Grupo controle – o grupo controle faz parte da maioria dos estudos
científicos, os quais são denominados de estudos controlados. No caso,
geralmente existe o grupo teste, onde o componente será testado ou a dieta
implantada e o grupo controle, em que há ausência do componente.
3 – Duplo cego – em estudos duplo cegos nem o aplicador e nem o
voluntário sabem o grupo em que este pertence. Assim, caso uma droga esteja
sendo testada, o aplicador da droga não sabe se ele está dando o medicamento
verdadeiro ou um medicamento falso; o voluntário, por outro lado, também não
sabe o que está acontecendo. Deste modo, evita-se que o conhecimento do
aplicador influencie os resultados no paciente ou o conhecimento do voluntário
influencie seu próprio comportamento.
4 – Placebo - Quando uma droga ou dieta ou componente está sendo
testado, é preciso que o grupo controle também receba uma versão não ativa do
que é testado. Assim, se o glúten está sendo testado, o grupo controle deve
receber o mesmo alimento, mas sem o glúten. Isso evita que resultados
diferentes nos dois grupos se devam a mais de um fator diferenciador. No caso,
se o glúten está sendo testado, só ele deve diferir nos dois grupos e não
outros fatores.
Referências
Aziz, I; Hadjivassiliou, M. ;Sanders, D. S. Does glúten sensitivity in the absence of
coeliac disease exist? (2012) BMJ, 1-4;
Byass, P.; Kahn, K.; Ivarsson, A. The Global Burden of Childhood Coeliac
Disease: A Neglected Component of Diarrhoeal Mortality? (2011). PlosOne,
6(7);
Biesiekierski JR, NewnhamED, Irving PM, Barrett
JS, HainesM, Doecke JD, et al. Gluten
causes gastrointestinal symptoms in subjects without celiac disease: a
double-blind randomized placebo-controlled trial (2011). Am J
Gastroenterol; 106:508-14;
Carroccio A, Mansueto P, Iacono G, Soresi M, D’Alcamo A, et al. Non-celiac wheat
sensitivity diagnosed
by double-blind placebo-controlled challenge: exploring a new clinical entity (2012) Am J Gastroenterol.; 107,
1898-1906;
Kaukinen K, Turjanmaa K, Mäki M, Partanen J,
Venäläinen R, et al. Intolerance to
cereals is not specific for coeliac disease (2000). Scand J Gastroenterol; 35:942-6;
Sapone A, Bai JC, Ciacci C, Dolinsek J, Green
PH, et al. Spectrum of gluten-related disorders: consensus
on new nomenclature and classification (2012) BMC Med 2012;10:13.
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