[RECEITAS VEGANAS][bleft]

(CONTO) O Boi e Eu

O boi e eu...

Lá estava eu. Eu e o boi. Naquela terra batida de barro, o sapato encharcado de lama seca; eu e o boi. Eu olhava para ele e ele para mim e respirava fundo quando passava pelos olhares de todos os moradores da vila. Eles não aprovavam o boi. No começo era coisa de criança e meu pai me olhava esquisito, mas dizia que ia passar. Quando não passou, me proibiu, mas minha amizade pelo boi era mais forte. Naquelas noites serenas, com céu estrelado e negrume, eu passava o mato com medo de cobra. Andava um pouco, abria portinhola e o boi me via. Que alegria! O boi sabia que eu sempre voltaria! Um dia, de manhã cedo, eu fui ver o boi sem meu pai saber e me escondi. O boi não me viu. Ele estava tristonho naquele curralzinho. Eu queria ajudar meu amigo, mas eu acho que não teria como ajudá-lo naquele momento, pois ele fora comprado pelo meu pai. Joana, minha irmã mais velha, noivou e eu sabia o que isso queria dizer: nasce uma vida no lugar de uma morte. Todos os anos quando uma mulher casava, a família da noiva agradecia ao noivo de ter-lhe tirado o fardo da filha fêmea. Ao contrário da família do boi, em que era bom ser vaca, no caso da minha família, nem sempre era bom ser mulher e como não era bom ser mulher em lugar nenhum, eles alimentavam a família do noivo com um macho sacrificado, meu amigo boi.

Minha irmã foi dada a casamento...




































Ah meu amigo boizinho! Não deixo que nada te aconteça. Mas eu só podia era confiar na Santa e pedir que ela tivesse misericórdia do boi. No dia do casamento eu já tinha resolvido me amarrar com palha seca e impedir que o boi fosse morto, serrado, massacrado, devorado. Matem a mim, não matem meu amigo querido! Mas, quando entrei na sala, com convicção, meu pai teve um infarto e morreu. Uma vida por uma morte! A festa foi cancelada e todos choramos a morte de uma pessoa que vai porque teve que ir. Ele foi chamado. Para o boi, nasceu o direito à existência, pois a tristeza não conseguiu manter a alegria que uma festa marital precisava.

Quando fiquei mais velho e minha mãe morreu herdei as terrinhas de meu pai e o boi. Agora me diziam que o boi era Meu! Mas quando fiquei sabendo, a primeira coisa que fiz foi correr para ele, abraçá-lo e tirar aquela amarra de seu pescoço. Eu abri o curral e ele ficou livre, dançando e mascando, mascando e ruminando suas idéias verdes. Mais tarde construí uma casinha em que ele mesmo podia abrir a porta e fechar, caso sentisse frio. Tinha a água do corguinho e a graminha germinada e eu e o boi ficávamos em silêncio, contemplando a imensidão dos horizontes.

Que amizade mais bonita nós tínhamos! O silêncio dizia mil palavras e contava mil estórias! Mas as pessoas não entendiam isso não. Elas tinham preconceito e diziam que eu estava brincando com a comida. Malvados! Acho que um canibal nunca consegue ouvir os gritos do humano que mata, por se sentir superior em inteligência. Para ele são grunhidos, para a vítima, um discurso filosófico sobre o direito à existência. Ele não consegue amar outras pessoas e as vê como comida, porque a comida é só comida e não é nada humano para ele. Mas eu, eu via o boi como um amigo! Afinal, eu não tinha o mínimo problema de compartilhar meus finos sentimentos, ao ver as estrelas cadentes passarem, com o boi. As ações do boi falavam sobre a gentileza, as dos vizinhos não.

Ali estávamos nós! O boi e eu, andando lado a lado, com a cabeça erguida, sendo os primeiros a mostrar que outras relações são possíveis e que a amizade vai muito mais além do que um ser humano pouco sensível pode admitir.

Os outros bois...


De fato, o tempo abaixou a poeira e os olhos cegos descansaram, parando de julgar. E naquela respiração ofegante de receio que eu tivera o tempo todo, eu percebi que o tempo e a persistência dos mais sagazes curam a ignorância dos tolos.

Velho, o boi já sabia que eu estaria lá para ele. Mas ainda me indagava junto com a imensidão das colinas: quem estaria lá para todos os outros bois?



 Autora: Camila Gomes Victorino 








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